Por que a psicanálise?

A psicanálise se difere de algumas terapias que tem como objetivo “eliminar o mal pela raiz”, como se diz em linguagem popular. Acredita-se que há muitos sofrimentos que não cessam simplesmente com uma amputação do mal, como se o mal tivesse uma causa apenas externa, como se fosse diretamente provocado por alguém ou algo que nos faz mal. Tratar apenas das manifestações sintomáticas seria como tentar resolver o vazamento de uma represa colocando o dedo no furo de onde escapa a água. Um dia, isso vai dar as caras novamente, em um outro lugar ou a partir de uma outra situação apresentada em nossas vidas. Ao contrário de uma eliminação, de uma solução instantânea, a psicanálise convida seus pacientes a se confrontarem com a sua própria dor. Acredita-se, assim como Freud acreditava, que todos temos responsabilidade frente ao rumo que tomamos em nossa vida. Ao contrário de vítimas dos acontecimentos, de receptores passivos de um certo saber – seja médico, psicológico ou o que for -, os sujeitos são convocados pela clínica psicanalítica a serem partes integrantes do próprio tratamento.



Textos Freud

SOBRE O INÍCIO DA PRÁTICA PSCICANALÍTICA

Freud revoluciona o que é sexualidade, expandindo o conceito para âmbitos nunca antes imaginados pela sociedade da época. O paradigma que imperava na medicina era de que a sexualidade reduzia-se à primazia dos genitais, consistindo em atos sexuais, monogâmicos e com o objetivo da reprodução, como Freud muito bem pontuou em 1908, em Moral Sexual Civilizada e doença nervosa moderna. Tudo que fugia a esta definição não era mais considerado do âmbito da sexualidade, mas do âmbito da perversão.
No entanto, esse movimento não ocorre de imediato, estando intrinsecamente relacionado a toda a prática de Freud junto com suas pacientes histéricas. É como homem da ciência, com o objetivo de apurar cada vez mais o caráter científico da medicina, que Freud descobre, ou inventa, como se preferir, a sexualidade. Em uma época na qual a histeria era considerada uma farsa de algumas mulheres que nada mais desejavam do que chamar atenção, Freud pôde ver nisso alguma verdade, se propondo a olhar com um pouco mais de profundidade o que se passava com aquelas mulheres. Segundo Azevedo (2008), Freud ensina que as aflições do corpo estão vinculadas ao fato de que, ao portar um corpo, o sujeito tem que passar pelo impasse inerente à sexualidade.
O inconsciente – conceito central no surgimento da psicanálise - está implicitamente correlacionado ao entendimento de sexualidade para Freud. O inconsciente só se situa como um campo específico da psique humana, para Freud, porque primeiramente se pressupõe uma sexualidade neste ser que se diferencia como humano. Indo além, só se é humano quando se é dotado de sexualidade. Como exemplo, em 1915, Freud expõe a influência da experiência infantil nos atos psíquicos, mostrando que a sexualidade só pode ser explicada pela vida sexual infantil inconsciente. Com Freud:
[...] ocorrem com freqüência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova (FREUD,1915/1984:192)

Porém, esta primazia da sexualidade na formulação do inconsciente só é possível alguns anos após o início de seus estudos. Em obras como O projeto para uma psicologia científica (1895) ou no próprio texto Interpretação dos sonhos (1900), no qual Freud apresenta a importância do estudo do inconsciente para a análise dos atos psíquicos, a sexualidade ainda não detém o posto de, pode-se dizer, personagem principal. É lógico que Freud já se referia a alguns aspectos da sexualidade, mas é fato que ainda não dimensionava a importância que ela teria no desenvolver de seus estudos.
Essa passagem é desenvolvida no aprendizado clínico de Freud. Em sua temporada em Paris em 1885, com o intuito de compreender um pouco mais sobre o fenômeno da histeria que tanto o intrigava, Freud conhece um outro médico, chamado Charcot. Suas práticas ressaltam-se no olhar de Freud, sem dúvida nenhuma intensificadas pela própria figura de Charcot, em seu misto de estranheza e sedução. As sessões assistidas por Freud eram movidas pela catarse, em um misto de teatralização e terapêutica. Apesar de Charcot não ter escrito muito, não ser um adepto da teoria, Freud retorna a sua cidade natal influenciado por idéias que constituirão o pilar de seus estudos teóricos na época. Lá, na cidade das Luzes, Paris, Charcot evidencia a Freud que os distúrbios dos pacientes tinham fundo sexual (História da psicologia moderna, Schultz, D., Schultz, S.,1981). Esta formulação de Charcot indica a Freud outra possibilidade de considerar a histeria.
Em parceria com Breuer, Freud retoma a sua prática com a histeria tendo como método a hipnose. Esse método tinha como formulação que a partir da sugestão, tendo o médico como figura de saber, o paciente se lembraria da causa que envolve o seu sintoma e assim este se dissolveria. A importância tanto de Breuer como de Charcot para o desenvolvimento da psicanálise reside no fato de ambos permitirem a Freud pensar a histeria como algo além de um mero fingimento. Outro ponto fundamental reside no fato de que os dois médicos davam lugar à fala em suas propostas de tratamento, ainda que esse lugar não seja idêntico ao que seria ocupado, em um futuro próximo, pelo tratamento psicanalítico. No entanto, a grande virada, aquela que fará com que a fala se situe no lugar da análise, não é proposta por um médico, mas por uma de suas pacientes, Emmy Von N.. Freud (1893), ao sugerir mais uma vez a hipnose, vivencia uma surpresa. A paciente diz a Freud que, naquele momento, ele nada mais tem a fazer do que escutá-la. Freud aceita a sugestão que se transformará no método que vai a partir daí nortear todo o tratamento analítico. O ato de delicadeza de Freud não é ter meramente dado voz a sua paciente, mas vai além, na medida em que, ao escutá-la, ele pressupõe um saber no discurso da histeria. A importância desta atitude reside no fato de que foi na pressuposição deste saber que Freud pôde falar de sexualidade.
A partir de seu estudo e de seu novo método, agora não mais focado na hipnose, Freud (1898) passa a reparar que alguns fatos se repetiam nos seus pacientes e que esta repetição se instalava pela via do esquecimento. Segundo Alberti (2008), nesse texto nomeado de O mecanismo psíquico do esquecimento, Freud introduz a relação dos sintomas psíquicos com os pensamentos inconscientes e com o sexo. Freud, a partir de então, repara que, na medida em que os pacientes falavam, o lapso de memória se extinguia e em seu lugar surgiam fatos ocorridos na infância que estavam relacionados a cenas sexuais. Profetizou, assim, diante de toda sociedade médica de Viena, que a neurose tinha como causa um trauma sexual, na medida em que todos os seus pacientes narravam uma cena de abuso sexual, ocasionada por uma figura masculina, geralmente o pai. Essas cenas, ao serem trazidas para a consciência e lembradas, faziam com que o sintoma neurótico se dissolvesse. Esta formulação foi denominada como a primeira teoria da sedução de Freud (1893), fundamentada no fato de que um trauma de origem sexual ocasionava a neurose. A sexualidade era, nesse entendimento, precocemente estimulada por um adulto que já portava uma sexualidade.
A teoria da sedução é rapidamente reformulada pelo próprio Freud (1897). Ele percebe que muitas das vezes essas cenas não haviam ocorrido de fato na vida daquele paciente. Segundo Rudge e Neto (2008), a origem da teorização a respeito da sexualidade infantil pode ser localizada quando Freud abandona sua teoria a respeito da sedução. Dizem-nos os autores que a idéia do sedutor perverso perde sua consistência, mas não deixa de existir no discurso do neurótico. Nessa virada conceitual, origina-se o entendimento da psicanálise a respeito da realidade psíquica. Coutinho (2000) afirma que a idéia de trauma, na obra de Freud, desemboca, assim, na concepção de que “a sexualidade é traumática enquanto tal” (COUTINHO,2000:21). Mostra-nos o psicanalista que isso não quer dizer que tenha existido de fato algum evento traumático na vida do sujeito, mas que a sexualidade é, por estrutura, essencialmente traumática.
Assim sendo, Freud percebe que essas cenas relatadas não deixavam de ter importância e influência diante do sintoma em questão. Mesmo sendo formuladas a partir da fantasia, estas cenas discorriam sobre a sexualidade do paciente em análise. A partir dessa formulação, a fantasia passa a se constituir como um conceito na obra de Freud, e vem a determinar o que é entendido em psicanálise como realidade.